Archive for the 'Entrevista' Category

“A geração de ‘nativos digitais’ é um mito”, segundo a pesquisadora australiana Sue Bennett

ENTREVISTA – SUE BENNETT

Revista Época, 18/03/2010

Sue Bennet

QUEM É – É diretora do Centro de Tecnologia em Educação da Universidade de Wollongong, na Austrália

O QUE FAZ – É uma das principais vozes céticas sobre o uso de novas tecnologias na educação. Já trabalhou nas universidades de Canberra, Central Queensland e Nacional da Austrália

Para a educadora australiana, é uma ilusão acreditar que os mais jovens têm intimidade inata com as novas tecnologias – e pensar assim pode prejudicar a educação

A geração nascida e criada na internet, a partir dos anos 80, é vista com interesse no mundo. São os chamados nativos digitais. Vários especialistas vêm afirmando que esses jovens, por seu convívio precoce com a tecnologia, têm poderes especiais, como capacidade criativa, jeito para aprender o novo e tolerância para realizar várias tarefas simultâneas. Como nossas escolas se adaptarão a eles? E como eles competirão no mercado de trabalho? Diante dessas questões, a educadora australiana Sue Bennett dá uma resposta surpreendente. Para ela, os nativos digitais não existem. Não passam de um estereótipo inútil.

ÉPOCA – Os nativos digitais – jovens nascidos depois de 1980 – são realmente diferentes?
Sue Bennett –
 A questão é que deve haver alguma diferença entre as gerações. Mas não é nada tão expressivo quanto tem sido dito por alguns especialistas ou em artigos publicados na mídia. Além disso, nessa geração, existe uma variabilidade muito grande no contato com as tecnologias. As diferenças dentro dessa geração são tão grandes quanto o que os distinguiria da geração dos mais velhos.

ÉPOCA – Faz sentido falar de uma geração de nativos digitais, então?
Bennett –
 Não acredito que esse rótulo tenha muita utilidade. Por que falar de um grupo específico da nova geração, com características semelhantes a outras pessoas de outra faixa etária? Cria a impressão de que todos os jovens têm uma intimidade inata com as tecnologias digitais. O que não é necessariamente verdade. Estudos recentes entre universitários australianos mostram que só 21% deles mantêm um blog e 24% usam redes sociais. Embora muitos usem uma vasta gama de tecnologias em sua rotina, existem claramente áreas em que a familiaridade com as ferramentas tecnológicas não é nada universal. Um estudo feito nos Estados Unidos com 4.374 estudantes de 13 instituições mostrou que a maioria tinha computadores pessoais e celulares. Mas só 12% deles tinham computadores de bolso. E uma minoria, cerca de 20%, já tinha criado conteúdo próprio para a internet.

ÉPOCA – De onde saiu essa expressão?
Bennett – Às vezes, observamos uma atividade, e aquilo parece muito novo para nós. E não reconhecemos que não passa de uma extensão de um comportamento prévio. Sem muita análise aprofundada naquele momento. Além disso, algumas pessoas ganharam fama ao defender esse tipo de ideia. E isso as incentivou a alimentar esse mito. É algo que soa bem. Vem de acordo com nosso senso comum, embora ninguém tenha investigado de verdade.

 ÉPOCA – Algumas pessoas propõem mudanças na educação para atender às necessidades dos nativos digitais. O que a senhora acha?
Bennett – Isso é um grande perigo. Se mudarmos as práticas nas escolas para incorporar essas tecnologias e atender os chamados nativos digitais, poderemos deixar a educação inacessível para a maioria dos jovens, que não está tão integrada ao mundo digital. Poderá agravar a situação dos estudantes deixados para trás. Nós ainda não sabemos exatamente se a tecnologia realmente melhora o desempenho dos alunos. Os estudos feitos até hoje mostram que os estudantes gostam dos computadores nas salas. Mas não está bem definido se eles melhoram o resultado. Na Austrália, o governo forneceu laptops a todos os estudantes no meio da high school (equivalente ao ensino médio), de 15 e 16 anos. Eles levam os computadores para casa.

 ÉPOCA – Por outro lado, como a lição que o professor dá no quadro-negro pode ser atraente para estudantes criados com o Facebook ou o Nintendo DS?
Bennett – Não podemos perder de vista o que queremos com a educação, embora, claro, o engajamento seja importante. Também não podemos ter uma imagem estereotipada do professor. A maioria deles consegue envolver os estudantes em atividades estimulantes usando os equipamentos tradicionais da escola. Independentemente da tecnologia, deveríamos investir em ajudar os professores a tornar o ensino mais interativo e provocante.

ÉPOCA – E no mundo profissional? A geração que nasceu com a internet tem mais habilidades do que os mais velhos?
Bennett – Aí certamente temos uma geração que é mais confiante no uso da tecnologia, que está mais disposta a aprender na base da tentativa e do erro. E isso faz diferença em um mundo onde as tarefas profissionais usam cada vez mais computadores e ferramentas que buscamos na internet e precisamos aprender a usar rapidamente. Por outro lado, embora eles entendam muito de computador, continuam sendo menos experientes em outras habilidades exigidas em cada profissão.

 ÉPOCA – Os profissionais mais velhos podem se manter atualizados com as novas tecnologias, assim como os jovens?
Bennett – De novo, estamos muito presos aos estereótipos. Quando pensamos no choque de gerações no trabalho, imaginamos homens de 60 anos comparados a jovens na faixa dos 20. Mas a maior parte das pessoas está nas idades intermediárias. Existem pessoas mais velhas que têm capacidade para aprender qualquer coisa. E também têm mais tempo e mais dinheiro para se dedicar a isso do que os jovens. O que acontece com frequência com esses profissionais mais velhos é que eles têm outras prioridades às quais dedicar sua energia. Enquanto você tiver saúde, conexão com o mundo e envolvimento com outras pessoas, terá meios para se atualizar com a tecnologia, sem limite de idade. Se estiver aposentado, até melhor, porque terá mais tempo para se dedicar a isso.

 ÉPOCA – Faz sentido imaginar que essa nova geração é mais capaz de executar várias tarefas ao mesmo tempo?
Bennett – Quando se fala em realizar várias coisas ao mesmo tempo, na verdade o que acontece é que ficamos pulando de uma tarefa para outra, com várias interrupções. Não estamos fazendo nada simultaneamente. Às vezes, é benéfico. Mas muitas vezes piora o resultado final. Por exemplo, quando você estuda algo, já está provado que consegue reter e compreender melhor aquilo se estiver bem focado.

“Enquanto você tiver saúde e envolvimento com outras pessoas, 
poderá se atualizar com a tecnologia sem limite de idade”

ÉPOCA – Alguns estudos mostram que os alunos têm menos visão crítica quando selecionam referências na internet. Como resolver isso?
Bennett – Primeiro, é importante saber que isso acontece. Depois, ser ativo e discutir com os alunos a importância de entender o contexto das informações e de procurar discernir o que são dados mais ou menos confiáveis. Mostrar que não dá para acreditar no primeiro link que o Google lhe dá. Em vários estudos com alunos da high school, se aquela tarefa não é muito importante para eles, ficam satisfeitos com informações colhidas rapidamente na internet, mesmo desconfiando que não sejam as mais confiáveis. Por outro lado, se é um trabalho mais decisivo para eles, então tomam mais cuidado na pesquisa. De certa forma, nós também fazemos isso sem a internet. Quando pesquiso em bibliotecas, posso pegar o primeiro livro que encontrar sobre um assunto ou tentar investigar mais, dependendo da circunstância. Essa capacidade para pesar quanto esforço você dedica a cada tarefa não é novidade da era digital. Há estudos que mostram como isso acontece há muito tempo com os estudantes. É da natureza humana.

ÉPOCA – Os campeões de digitação em teclado de celular têm todos menos de 15 anos. Essas habilidades farão diferença quando forem maiores?
Bennett – Lembra-se do cubo mágico dos anos 80? Alguns adolescentes montavam o cubo com rapidez incrível. Parecia que tinham habilidades mentais superiores e fariam diferença na sociedade. Acontece que eles simplesmente tinham mais tempo e interesse para praticar.

ÉPOCA – E as habilidades desenvolvidas pelos jovens nos games serão úteis na vida adulta?
Bennett – É uma suposição que não foi devidamente testada. Não sabemos se essas habilidades continuam eficientes em outro contexto.

ÉPOCA – A senhora, que nasceu antes da era da internet, acha que tem menos habilidade com tecnologia do que seus alunos?
Bennett – Eles têm muito mais acesso à tecnologia do que eu tive quando tinha aquela idade. Por outro lado, eu estaria perdida sem meu laptop. Escolho o tipo de tecnologia de que preciso em cada momento. Não é uma questão etária. Algumas pessoas de minha idade têm tanta intimidade com tecnologia quanto meus estudantes de 18 anos.

ÉPOCA – A senhora gostaria de ter algum conhecimento tecnológico que seus alunos têm?
Bennett – Espero que não.

Leia também: “No País, metade dos alunos não tem acesso a computador”
Assista:  

Entrevista com Alberto da Costa e Silva na GloboNews

Entrevista – Joseph Miller

Fonte: Revista História / Biblioteca Nacional

A História da África no Brasil ainda está para ser feita

Joseph Miller


Presidente da Associação de Estudos Africanos dos Estados Unidos e professor do Departamento de História da Universidade de Virgínia, o historiador Joseph Miller tornou-se um especialista em escravidão e diáspora africana quase acidentalmente. Por sugestão de Jan Vansina, seu orientador, no Centro de Estudos Africanos da Universidade de Wisconsin, nos Estados Unidos, na década de 1960, ele decidiu pesquisar Angola. Segundo Vansina, não haveria dificuldade em compreender e em se fazer entender em português, um idioma fácil. Na verdade, o aprendizado da língua foi um tanto árduo, algo que só dominou após uma temporada no Rio Grande do Sul e outra em Portugal, antes de permanecer oito meses em Angola, pesquisando os costumes locais. O esforço valeu a pena. Até hoje Joseph Miller se confessa fascinado pelo tema devido às constantes revelações de aspectos desconhecidos sobre um continente tradicionalmente esquecido pela história oficial.

Autor de diversos livros sobre História africana, um dos mais conceituados especialistas em tráfico negreiro, Miller prepara um estudo completo sobre a escravidão, desde a época de Roma. Em visita ao Brasil, contou que se interessou pela história colonial do país – e o sistema colonial português – porque precisava entende-los para compreender Angola. No Rio de Janeiro, Joseph Miller conversou com a Revista de História. Da conversa também participaram o embaixador Alberto da Costa e Silva e a pesquisadora Mariza Soares.

RH – O que o levou a se dedicar ao estudo da História da África?
JM – A escolha foi completamente acidental. Eu ia assumir a direção de um grande armazém, que estava na minha família há três gerações, em Cedars Rapid, Iowa, mas não gostei muito. Tinha 25 anos, uma família, mulher, filha e a hipoteca de uma casa enorme para pagar. Precisava de uma profissão que garantisse alguma segurança. Eu gostava de muitas coisas, pouco sabia de História, mas tinha curiosidade a respeito de América Latina, Ásia, Oriente Médio. Acabei me candidatando a uma vaga na Universidade de Wisconsin, onde estava instalado o melhor centro de estudos africanos do mundo, na época. Eu era o único da turma que não conhecia a África, todos os outros haviam trabalhado nos Corpos de Paz ou em projetos missionários, sabiam idiomas africanos, haviam morado na África. Acabei me envolvendo de tal forma com os estudos sobre a África que até hoje, depois de tantos anos, ainda acordo entusiasmado com a expectativa de descobrir aspectos novos deste tema fascinante, que me surpreende diariamente.

RH – Como eram os estudos de Historia da África nos Estados Unidos na época?
JM – O campo era novo ainda. O interesse começou no fim dos anos 50, com a independência de diversos países africanos e também com a entrada da União Soviética na corrida espacial. Com a corrida espacial, o lançamento do Sputnik, o governo americano ficou assustado porque a população não conhecia outros idiomas. É sabido que nós, nos Estados Unidos, não temos grandes habilidades com idiomas estrangeiros. Por isso, o governo criou um fundo para apoiar o estudo das línguas do Terceiro Mundo. Inclusive o português falado no Brasil e nos países africanos, além das línguas da África. Depois, grandes fundações como a Ford instituíram fundos para criar centros de estudo das diferentes regiões do globo: Oriente Médio, América Latina, Ásia, China, Índia e África. Wisconsin tinha um departamento de idiomas e literatura africanas, o que não era comum naquela época e fornecia bolsas para um grande número de alunos, a maior parte em História e Ciência Política. A associação de estudos africanos fora fundada em 1957. A maior parte dos afro-americanos já 200, 300, naquela altura, era de historiadores, professores de Ciência Política, antropólogos, quase a totalidade.

RH- Os movimentos pelos direitos civis marcaram os estudos da África?
JM – No começo, um pouco. No fim dos anos 60, quer dizer, 1968, 1969, o movimento dos direitos civis entrou no assunto. E era uma batalha mesmo, 98% dos universitários eram brancos, tínhamos 10% de alunos negros, era a nossa herança de segregação. E os sentimentos eram intensos. Nos anos 70, a discussão já era sobre questões liberais, mais uma questão de raça, de desigualdade, que continuam até hoje. Nos Estados Unidos, há 30 quase 40 anos, os estudos africanos eram, também, assunto de brancos.

RH – Como o senhor se interessou por Angola e pelo Brasil?
JM – O fundador do programa de estudos africanos em Wisconsin, professor Philip Curtin, mandou que eu procurasse o professor Jan Vansina. Inglês é a primeira língua em Estudos Africanos. Francês, a segunda, português, a terceira. Eu logo falei que pretendia fazer minha tese de mestrado sobre qualquer parte da África Central, porque lá se fala francês. Mas Vansina me sugeriu que eu abordasse Angola, que estudasse o Reino de Caçange. Ele falou que se eu não quisesse aquela história, iria aproveita-la em seu próximo trabalho de campo. Eu concordei, então, temeroso, porque conhecia um pouco de francês, mas não sabia português, nenhuma palavra. Vansina, que era belga, me garantiu que era fácil aprender português. Acabou que tive que estudar mesmo, ganhei uma bolsa de estudos para fazer um curso de oito semanas no Rio Grande do Sul. Estive também em Portugal e, em 1968, passei dez meses em Angola, a maior parte deles no interior, sob vigilância do Exército. O ambiente era muito tenso, por causa da guerra pela independência.

RH– O senhor destaca alguma experiência interessante nesse período em que viveu lá?
JM – Uma vez, cheguei a um povoado, uma aldeia no interior, onde o chefe da guarnição militar havia convocado os líderes da região para me contarem a história deles. Eles não tinham a menor idéia do que eu fazia, que era pesquisa de História Africana. Para esses sobas, usando vestidos e chapéus que simbolizavam o poder, não pode haver história significante dos africanos para esse estrangeiro sem conhecimento nenhum. Comecei a gravar suas histórias. Depois de dois dias, eles ficaram cansados de falar e voltaram para as suas aldeias. Ali por perto, conheci um homem de 40, 50 anos, que era o historiador oficial do reino. E eu disse:”Olha, eu vim estudar o seu povo, você pode me dizer qualquer coisa sobre os Jagas?”. Jagas era um nome que remonta aos princípios do século XVII . Então, ele falava apenas sobre a genealogia – fulano nasceu, fulano nasceu. Passamos algumas semanas, dois meses e, afinal, eu percebi que essas genealogias são a constituição oral deste reino. Quando descobri isso, tudo ficou claro. Estavam a falar em coisas que eu podia entender, mas como metáforas, completamente diferentes das nossas abstrações, porque quando falamos em pessoas estamos nos referindo a elas. Para eles, não, a pessoa representa o grupo, o casamento representa uma aliança, uma ligação entre uma pessoa, ou um homem. E os nomes deles também significam a função que exercem no reino. A própria função tem o nome de uma pessoa desde o século XVII. Assim, José, na realidade, quer dizer o ministro da fazenda, ou quer dizer o cobrador de impostos. Manuel quer dizer general.

RH – Uma concepção de história completamente diferente.
JM – Sim e entender isso foi a descoberta mais importante para mim. Isso não é apenas uma curiosidade, é a maneira deles contarem sua história, que deve ser vista com o mesmo respeito, a mesma seriedade que temos com nossas maneiras de falar, de pensar.

RH – Como o senhor usou essa história contada pelos sobas aos dados do governo português e colonizador?
JM – Procurei verificar e estabelecer a verdade sobre as tradições orais, comparando-as com os documentos portugueses. Descobri que não havia correspondência nenhuma entre as tradições orais e os documentos dos portugueses. Eram mundos completamente diferentes. Povos que se casaram, trocavam mercadorias entre si, lutavam muito com os outros povos, mas tinham experiências completamente separadas das mesmas coisas, dos mesmos lugares, dos mesmos tempos. Esta idéia era a base com a qual eu comecei meu livro sobre o tráfico (Way of Death, que será brevemente traduzido no Brasil com título provisório de Mercadores da Morte).

RH – A História de Angola e sua vinculação com o Brasil são abordadas em seu livro Mercadores da Morte, Como o senhor iniciou seus estudos sobre a história do tráfico?
JM – Tinha começado ar escrever a história do reino de Angola, dos primeiros anos do século XVII até o fim, por volta de 1850, 60, 70. O segundo capítulo seria o ambiente, a política econômica de Angola, o tráfico de escravos. Depois de 10 anos e 800 páginas impressas, afinal, terminei com o segundo capítulo. Ainda tenho que escrever mais seis, sete capítulos. Para entender os Mercadores da Morte, é necessário entender Angola. Para entender Angola, descobri que tinha que entender também o Brasil do século XVIII. Para entender o Brasil, tinha que entender Portugal, o sistema colonial. E depois das 800 páginas, ainda tinha que entender a Inglaterra, mas não escrevi essa parte.

RH – O Senhor pretende agora escrever uma história geral da escravidão?
JM – Sim, já comecei a falar da prática da escravidão desde seus primórdios, há 50 mil anos.

RH – Qual a diferença básica entre a escravidão no mundo clássico e no mundo moderno?
JM – Mundo clássico quer dizer o mundo de Roma e tudo isso. Basicamente, a história da escravatura é uma história das mulheres e de crianças, não dos homens. Estima-se que 75%, 80% das pessoas escravizadas eram mulheres e algumas crianças. Em Roma ou na Grécia clássica, os escravos viviam nas casas dos donos, sem presença nas ruas. Saíam às ruas apenas de passagem. Moravam, viviam dentro do complexo residencial familiar. Não era possível desenvolver a escravidão assim na Europa, na África, nem na Ásia, nem em qualquer outra parte do Velho Mundo, porque havia sempre competição dos donos das terras, da Igreja, das fundações eclesiásticas. A escravidão moderna é produto do desenvolvimento comercial no Atlântico. Os africanos controlavam as terras, enquanto os europeus permaneciam no mar, fazendo o tráfico. Foi um momento em que houve oportunidade de crescimento para a economia comercial, um crescimento maior do que em qualquer outra situação no mundo, incluindo o Oceano Índico. No Atlântico, homens estavam sendo comprados, não apenas mulheres. Os escravos eram comprados a prazo, o que exigia a existência de uma autoridade pública e financeira para tratar legalmente desses créditos. Por isso, do século XVI ao do século XVII, elaboraram a legislação que definiu a escravidão moderna. A escravidão passou a ser objeto do direito comercial, do direito civil e político no império português, na França, na América do Norte. Para pagar as dívidas dessas compras a crédito, tinham que empregar os escravos para produzir açúcar, tabaco, algodão, eventualmente, café. Precisavam de financiamento para custear despesas enormes, de cruzar um oceano inteiro, a metade de um hemisfério. É isso que acontece nas primeiras décadas do capitalismo comercial no Atlântico.

RH – O que as suas pesquisas sobre o tráfico mudaram em relação ás interpretações tradicionais?
JM – Eu queria inserir o tráfico de escravos no Atlântico em contextos históricos maiores: África, Brasil, Portugal, eventualmente, Inglaterra, o que não consegui. E também eu queria traçar os modelos sócio-científicos para a década de 1960. A história do tráfico do Atlântico era a história econômica, e os historiadores tinham que contá-la através dos modelos econômicos. Não abordavam a experiência dos escravizados, nem dos marinheiros ou oficiais que os traziam nos navios negreiros. Nem sequer o dos escravizadores, como se não houvesse gente no processo. Descobri que essas pessoas viviam, funcionavam, trocavam, casavam, agiam em cinco ou seis mundos culturalmente afastados. Como havia o risco de os escravos morrerem, a estratégia de todos os envolvidos nessa longa trilha do centro da África até o Brasil era que os escravos morressem na conta de alguém, do outro. Para evitar prejuízo, o objetivo de todos era passar esse escravo, antes que ele morresse, para o nome de outro. Isso tudo exigia uma estrutura financeira muito complexa, pois tinham que combinar os interesses, passar os escravos de um para outro, para o seguinte até chegar ao dono, no Brasil, que poderia viver no interior, não no litoral. Eu queria abordar isso tudo, mas há poucos registros encontrados até agora. A documentação conhecida é pequena.

RH – Quantos africanos vieram para as Américas, para o Brasil?
JM – É possível fazer uma aproximação muito exata. De acordo com dados levantados pelo professor David Eltis, houve em torno de 37 mil viagens carregando escravos da África às Américas do Norte e do Sul. É quase certo que o número de escravos da África, dos escravizados desembarcados nas Américas seja por volta de 11 milhões. Eles são os sobreviventes de 12.500.000 escravos embarcados na África, entre 1500 e 1869, 1870. Desses 11 ou 12 milhões, 40% vieram para o Brasil. Quase todos eram nascidos na Grande Angola, que começava praticamente no Gabão e ia até o Brunei.

RH – Como é que homens, seres humanos puderam conviver com aquela violência no limite, que marcava o tráfico?
JM – Porque o sentimento de humanidade ainda não existia no Atlântico Sul. Existia um sentimento de grupo, grupo dos brasileiros, dos africanos, da lealdade pessoal, da lealdade à família, à irmandade. São todos grupos isolados. E o futuro do grupo, da família, pode ser família real, pode ser família aristocrática, pode ser família pobre, pode ser família das plantações aqui no Brasil, era continuar a linhagem. Para proteger, para defender a linhagem, os grupos eram capazes até de sacrificar seus próprios membros. Nas épocas de seca em Angola, em períodos de grandes estiagem, as famílias vendiam alguns de seus membros para que os outros pudessem sobreviver e preservar o grupo. Os números do tráfico crescem durante essas secas. Os séculos XVII e XVIII, principalmente, foram época de acumulação capitalista na Europa, de escravos e terras nas Américas. E também acumulação dos meios de produção na África, que eram as pessoas. E também pessoas nas Américas. Eventualmente, meios industriais, técnicas e tecnologia, na Europa, fazem a mesma coisa de maneiras diferentes.

RH – Por que a cachaça, ou a Jeribita, fez tanto sucesso na África?
JM – O baixo custo da produção da Jeribita permitia que ela fosse utilizada por senhores de engenho na compra de escravos africanos. Mas a demanda não surgiu na África. A demanda foi criada pela oferta.

RH- Os africanos abandonam as bebidas tradicionais?
JM – Não, eles nunca abandonaram o Vinho de Palma, a cerveja, eles passaram a beber cachaça também. Isso foi assim também com os que foram levados para os Estados Unidos, que consumiam o conhaque e as bebidas que faziam na África. Os que vieram da região da Alta Guiné também mantiveram suas bebidas nativas. A cachaça tinha a vantagem de ser durável, enquanto o Vinho de Palma é muito perecível. A diferença importante é que o vinho de Palma tinha uma função cultural e a cachaça, não. O vinho era consumido em grupo, enquanto a Jeribita era uma bebida que se tomava sozinho, em segredo. O vinho conseguia conservar a estrutura das culturas, o idioma, as metáforas, os símbolos, as linguagens, as estruturas sociais, as práticas sociais, as estratégias e todo o resto.

RH – Como a história brasileira encara a África?
JM – A História da África no Brasil ainda está para ser feita. Quando estive aqui em setembro do ano passado, constatei que o Brasil tem uma base tão rica, tem talentos tão bons, tem documentação sobre o tráfico, sobre os afro-brasileiros, sobre os escravos no Brasil. É uma base muito importante, muito boa, muito sólida. Existe um conhecimento grande do assunto, porém a História da África mesmo, a História da África como é entendida nos Estados Unidos, Inglaterra, França e na África, ainda está para ser feita aqui, estabelecendo parâmetros diferentes, sem aproximar-se dos princípios convencionais, familiares da História do Brasil, da América, da Europa. Há que se estabelecer um curso independente dessa história dos africanos no Brasil. E tenho impressão de que o Brasil está preparado agora para fazer exatamente isso.


maio 2024
S T Q Q S S D
 12345
6789101112
13141516171819
20212223242526
2728293031  

Páginas

Posts recentes

Categorias

Para leitura dos arquivos de textos

Os textos em formato PDF são arquivos de leitura e a visualização requer a utilização de programa adequado. O soft mais popular e utilizado é o Acrobat Reader, que pode ser obtido ao clicar aqui.